Burocracia, trânsito, gente implicante, reunião de condomínio, chefe cri-cri, sala de espera... É possível passar por tudo isso sem tanta irritação e mal-estar.
Pode apostar: você não tem a menor
ideia de qual é o nosso maior problema ao enfrentar as chatices que
o destino coloca no nosso caminho. Juro, não sabe, como eu não
sabia, porque se soubesse não teria o menor interesse em ler esse
texto. É algo óbvio, tão simples, que talvez você nunca tenha
pensado nisso. A resposta a essa questão, na verdade, é a grande
chave para matar a charada. E, graças a Deus, você não vai
precisar chegar ao último parágrafo desse texto para entender
porque temos tanto horror do que desafia nossa paciência e
tolerância. Vou entregar o segredinho agora, logo de cara.
Existe um motivo básico e
onipresente toda vez que algo nos tira do sério. Em geral, temos
faniquitos diante das chatices porque secretamente achamos que o
mundo deve se curvar (se possível, imediatamente) aos nossos
desejos. Então, quando ele não se inclina diante dos nossos
caprichos, certamente por causa de um impertinente insuportável, a
gente fica fora de si. As emoções negativas sobem como um vulcão.
E talvez nosso desejo mais íntimo passe a ser torcer o pescoço
daquele implicante inveterado.
Essa reação acontece porque
falta-nos uma informação básica em nossa educação emocional: a
de que chatos e chatices sempre farão parte da nossa estadia neste
mundo. É o preço que pagamos pelos seus mares azuis, seu clima
ameno, suas verdejantes florestas e os momentos inefáveis de amor
que podemos viver. Assim como as algas flutuando na água dos
oceanos, as chatices são inerentes à nossa existência. Vêm no
pacote. E não dá para brigar feito um louco com esse pedágio
planetário. A vida não vai se render aos seus caprichos e
necessidades. Como uma rainha, ela desfilará altiva diante do seu
nariz enquanto você ferve de ódio e raiva. Ela é indiferente ao
que você acha ou não acha dela.
Por isso, conforme-se. Não vai ter
uma vaga eternamente esperando por nós, nem funcionários atentos e
competentes para atender nossos mínimos desejos, o trânsito fluindo
a qualquer momento e somente dias ensolarados e sem nuvens. Exigir
esse mundo utópico onde todas as nossas necessidades sempre serão
satisfeitas é uma perda incomensurável de tempo e energia. Então,
relaxe. Aceite. A vida não é um mar de rosas. A existência não
vai ceder aos nossos anseios. E ataques de ódio, estratégias de
sedução ou estratagemas maquiavélicos não vão adiantar. Porque
se o esperneio ou uma saída inteligente podem resolver um caso, ali
na frente já vai ter outro que vai exigir ações diferentes. Querer
manipular a vida dessa maneira é desgastante e inútil. Além de ser
uma ilusão de controle, que fatalmente vai ser quebrada em algum
momento, às vezes com muita dor.
Então, se quiser brigar com as
chatices, escolha aquelas que valem a pena, se não quiser ser
consumido por elas. “Reconhecer, do fundo do coração, e de uma
vez por todas, que a vida não vai se comportar do jeito que a gente
quer, e que temos de aprender a lidar com isso, traz um imenso alívio
emocional. A partir dessa conclusão, não sofremos tanto com a
realidade. E se formos interferir no que acontece, vai ser de outra
forma, mais sábia e inteligente, pois com base nessa aceitação
interna, estaremos mais calmos e centrados. E o resultado será mais
eficaz”, diz a psicóloga paulista Irene Cardotti.
E aí vem o pulo do gato: a vida não
pode mudar, mas você, sim. A única coisa real que pode aliviar o
curso indiferente da chatice é a sua atitude diante dela. Ponto
final. O restante desse texto é para você saber como fazer isso.
Esses adoráveis malas sem alça
Edith Wilson Macefield era uma
velhinha curvada de 86 anos, com olhos azuis acinzentados e óculos
com aros de metal. Ela se recusava a vender sua casinha para que
fosse erguido, no lugar, um shopping gigantesco em Seattle (EUA).
Para a construtora, ela era uma chata de plantão. E para Barry
Martin, o engenheiro de operações encarregado de falar com ela, um
verdadeiro enigma. Por que alguém se recusaria de maneria tão firme
a vender sua residência por uma oferta dez vezes maior do que o
valor real?
Barry escreveu um livro fascinante,
Uma Casa no Meio do Caminho (Sextante), sobre o que aprendeu com essa
velhinha cri-cri que depois se tornou sua amiga e mestra. Ele conta
como saiu completamente transformado depois dessa relação: com
Edith, ele aprendeu a enxergar seus próprios limites, a
ultrapassá-los, a lutar pelo que acreditava, e a encarar seus
adversários de frente. “Durante o tempo em que convivemos, a casa
de Edith se tornou minha escola”, escreveu ele no primeiro
capítulo.
E, de fato, existem boas lições
para aprender com os chatos de plantão. Eles nos ensinam muito sobre
quem realmente somos porque nos tiram da zona de conforto. Sacodem
nossas certezas internas, atingem nossos pontos fracos, nos provocam.
E nos colocam nus diante de nós mesmos. São seres extraordinários,
essas pessoinhas: podem revelar mais sobre nós do que 50 sessões de
terapia. Aliás, a situação ideal é justamente fazer terapia
quando um ou mais chatos estão pegando no pé. Eles são mestres
aceleradores de consciência, se soubermos lidar com essa experiência
enriquecedora.
Eu mesma aprendi muito com aqueles
que me tiraram da minha toquinha aprazível de crenças. Durante seis
meses, um desses provocadores foi meu amigo no Facebook. Extremamente
inteligente, mas de centro-direita, ele afugentou de cara a maioria
dos meus amigos de esquerda, que ficaram indignados com a presença
dele por ali. Como eu aceitava dialogar com uma pessoa tão diferente
do que eu era e pensava? Por que não excluía esse reacionário da
minha lista? E, o pior para mim, o que eu tinha a ver com ele?
Iconoclasta como Krishnamurti, de quem era fã, o moço não perdoava
qualquer deslize conceitual de minha parte ou incoerência. A cada
frase era obrigada a checar o que estava pensando: acreditava mesmo
no que estava falando? Era isso mesmo o que queria dizer? Ele se
manifestava em todo e qualquer post, com bastante senso de humor, mas
também com provocações agudas. Fui obrigada a passar a régua em
boa parte de minhas crenças nesse período. Muitas vezes, fervi de
raiva. Outras, senti um carinho real, apesar das enormes diferenças
de pensamento que nos separavam. Mas confesso que nesse embate nunca
nos ferimos mortalmente. No final do ano, nos despedimos inclinando a
cabeça um diante do outro como dois espadachins: concluímos que
nossas discussões não beneficiavam ninguém. Mas, se um dia me
perguntarem, diria que sou muito grata a esse inesperado professor
que me obrigou a refletir mais profundamente sobre boa parte do que
acredito.
O porquê do chilique
Não aceitamos a vida do jeito que
ela é em parte porque pertencemos a uma geração já acostumada a
ter uma parcela de nossas necessidades atendidas na infância. Somos
mimados, caprichosos. Nos sentimos muito especiais. E esse é um
grande problema. “Lidamos mal com a frustração. Num mundo mais
limitado e frustrante, chegamos à maturidade com mais jogo de
cintura e menos exigências, além de muito menos arrogância. Já
numa época em que a maior parte das vontades foram atendidas
rapidamente, nos tornamos insaciáveis e críticos”, afirma Irene
Cardotti. O pior é que nem nos damos conta que os insuportáveis
podem ser nós mesmos.
Rafael Santandreu, médico espanhol
da linha da psicologia cognitiva e autor do livro Pare de Fazer Drama
e Aproveite a Vida (Sextante), dá duas razões para que isso
aconteça. Para ele, temos o hábito de transformar expectativas em
necessidades prementes que, se não forem atendidas, convertem-se em
ansiedade, angústia, raiva ou depressão. Ele as batiza, em tom de
brincadeira, de “necesseítes”, isto é, de necessidades
patológicas, ou neuroses. As expectativas (que podem ser legítimas,
inclusive) almejam um mundo perfeito, equilibrado, certinho e
aprazível. Tudo bem, nada contra. A questão é que, quando nossas
expectativas são transformadas em necessidades, exigimos que o mundo
seja assim. E sofremos se ele não for.
Santandreu também acha que
exageramos e dramatizamos a maioria dos acontecimentos chatos porque
achamos que o mundo deve nos servir. E também porque só aceitamos
as situações se forem boas, na nossa avaliação, é claro. Em
resumo, sofremos não exatamente pelo ocorrido, mas pelas crenças
negativas (medos, na maioria) que temos sobre os desdobramentos
daquilo. Essa visão pode tornar a vida bem complicadinha. Mas qual
seria a solução? Santandreu tem várias sugestões para minorar
esse problema. Acho uma delas genial. Quando nos tornamos seres
lamurientos com as chatices da vida, devemos nos perguntar: o que o
físico Stephen Hawking, portador de uma doença degenerativa
progressiva, ou o ator Christopher Reeve, que ficou imóvel do
pescoço para baixo, pensariam sobre nossas dificuldades? Eles sempre
foram felizes e atuantes, apesar da condição física incapacitante.
E nós? O que poderíamos dizer sobre nossos obstáculos para eles?
O médico aconselha a pensar em como
nossa vida é breve. Isto é, começar a nos perguntar sobre nossos
incômodos: são tão importantes assim? Muitas vezes, é algo
passageiro. Outras, é algo que não nos atinge verdadeiramente, e
que exageramos no seu valor, como ele diz. Ou pode ser que aquele
chato de plantão só esteja esperando alguém que interaja com mais
humanidade e respeito para com ele para se tornar uma pessoa muito
interessante, como a velhinha Edith. Com mais acolhimento, humor e
leveza, e sem desejo de manipulação, pode ser até que a relação
mude. Ou não. Mas se não se transformar e continuar no seu rumo de
sempre, você, que já sabe que a vida inclui inexoravelmente suas
chatices, já não será tão vulnerável a isso.
LIANE ALVES baixou a crista quando
um funcionário cri-cri a ensinou que raciocínio ágil não tem o
menor valor diante, por exemplo, da burocracia.
Liane
Alves
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